Agora que a poeira começa a assentar em torno da crise na Geórgia partilho aqui algumas reflexões sobre o que se passou e sobre as consequências deste episódio no futuro da estrutura securitária do eixo euro-atlântico.
1) A primeira pergunta que me vem à mente no meio de tudo o que se passou é: de que é que a Geórgia estava à espera? Nos últimos tempos, principalmente desde o ano passado, que a Rússia vem dando sinais cada vez mais explícitos de que aquilo que foi tradicionalmente o seu back-yard o continuará a ser durante muitos anos, não aceitando Moscovo que este passe a esfera de influência do Ocidente. Ao atacar a Ossétia do Sul, em violação dos acordos de cessar-fogo, a Geórgia "descongelou" este conflito e forneceu um pretexto único, de que Moscovo estava certamente à espera, dada a prontidão da resposta, para que a Rússia destruísse o incipiente aparelho militar (que vinha sendo, segundo relatos vários, significativamente melhorado com a ajuda dos EUA), as infra-estruturas e a economia da Geórgia.
2) A reacção da Rússia foi certamente desproporcionada face aos ataques georgianos. Mas Moscovo não perderia certamente a oportunidade única que lhe foi oferecida de bandeja pelo Presidente georgiano, cuja ingenuidade, se não fosse trágica, seria certamente cómica.
3) De facto, estaria Tiblissi à espera que os EUA, ou qualquer outro dos países que, a meu ver irresponsavelmente, apoiaram a sua adesão à NATO, fosse a seu socorro militarmente? Um país envolvido numa guerra de guerrilha no Afeganistão e outra no Iraque, iria, na mente do Presidente Saakashvili, entrar em conflito com a Rússia?
4) Este jogo de "name and shame" não pode deixar de fora os EUA. A Administração Bush foi inepta, irresponsável e ambígua. Prometeu aos georgianos a entrada na NATO, ajudou-os a armarem-se, comprometeu-se publicamente a defender a sua integridade territorial, enquanto, nos bastidores, enviava tímidas mensagens (pelo que se lê nos jornais) de contenção e de aviso sobre aquilo que Moscovo estava a fazer (v.g. aumento das relações económicas com a Abcázia e a Ossétia do Sul) e que não era mais do que uma armadilha em que Tiblissi não deveria cair. Inconscientemente, Tiblissi deveria saber que o apoio de Washington não seria tão incondicional quanto alguns poderiam crer, já que, como alguém escrevia no Washington Post, Tiblissi preferiu pediu perdão depois do que pedir permissão antes.
Face a este cenário, o que esperar no futuro? A meu ver, as consequências são relativamente lineares:
1) A Rússia atingiu os seus objectivos. Destruiu a Geórgia e logrou criar uma situação face à qual manterá em território georgiano, durante muitos e bons anos, o seu exército. Moscovo não quer a independência da Abcázia e da Ossétia do Sul (o tão propagado precedente do Kosovo é um mero recurso estilístico e as resoluções aprovadas na Duma a defenderem o reconhecimento dessa independência não passarão do Kremlin). O que Moscovo quer é ter lá tropas, é manter o conflito congelado e a Geórgia amputada.
2) Com este conflito, a Rússia chamou o bluff do Ocidente e dos EUA em particular. Aqueles que garantiriam a integridade territorial da Geórgia não fizeram mais do que apelar a um cessar-fogo (numa rara demonstração de bom senso). Moscovo está agora certa de que pode fazer o que bem entender na sua vizinhança que dificilmente alguém, em Washington ou Londres, quererá entrar em guerra por causa de Tiblissi.
3) A Geórgia (e a Ucrânia) não vão entrar na NATO. Quem pensou que os afrontos feitos a Moscovo na década de 1990 (em que num dia se dizia que a NATO não se iria alargar a Leste e em que, noutro, se acolhiam os Estados Bálticos no North Atlantic Council) se poderiam repetir desengane-se. Moscovo não o vai tolerar e deixou-o bem claro. A Ucrânia deve agora, em bom português, pôr-se a pau e pensar bem se quer manter a posição de recusa à continuação da frota russa no porto da Crimeia. O argumentário russo, nesta crise, foi "há russos na Ossétia e é nossa função e dever protegê-los". Não é sequer necessário invocar números para sabermos que a Ucrânia está dividida em dois, entre russos e ucranianos, e todos sabemos para que lado pende a Crimeia.
4) Sarkozy foi dos poucos dirigentes europeus que esteve bem. Não entrou publicamente a matar, culpando uns e outros. Assumiu uma posição conciliatória, apelando a um cessar-fogo e negociando-o rápida e eficazmente. Se a UE quer manter alguma credibilidade nesta crise e no futuro que se avizinha, sugere-se que o bom senso impere e que se evitem rumos de acção mais voluntaristas.
5) A carreira de Saakashvili está acabada. O apoio dos EUA vai ter um fim próximo e o rumo de aproximação da Geórgia à UE vai ser mais difícil. Apoiar-se-á certamente a reconstrução do país e conceder-se-ão, eventualmente, algumas benesses, mas a União não vai querer no seu seio um país comandado por gente desta laia.
Bottom-line: Moscow is back.
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1 comentário:
Não me surpreende de forma alguma, aliás, estava a demorar... A Administração norte-americana testou Medvedev no seu primeiro momento de tensão geopolítica no Kosov, mas assim que teve uma oportunidade, agarrou-a firmemente (uns dizem que demais). Não foi por falta de aviso!
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