quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Arrepiante...

Não deixa de arrepiar um pouco toda esta tensão com a Rússia, pois se olharmos para a situação e fizermos um pequeno exercício de história comparada, ficamos com a ligeira impressão de já termos visto isto uma vez. Parece um 'cocktail de Crimeia com um twist de Guerra Fria'. Perdoem-me a ligeireza da comparação, mas esta 'espiral da estupidez' tão característica pode ter consequências tão más quanto previsíveis, pelo que resta-nos aguardar que desta vez não haja precipitações. Nem EUA nem Rússia estão capazes de se enfrentarem bélicamente, pelo que qualquer confronto dessa natureza seria um desastre militar de proporções épicas.

Mas ainda existe outra questão: qual a posição de Barack Obama sobre o assunto? Afinal de contas, não vai ser Bush a resolver esta situação, pelo que é totalmente natural que Medvedev (e a Europa) queira saber com quem irá lidar no futuro. Pode ser que estejamos a assistir a uma estratégia clássica, muito URSS, cuja principal finalidade é estudar o adversário e ver até onde podem 'esticar a corda'. Os Russos fizeram-no com JFK, porque não com o seu 'herdeiro' político?

Pode parecer simplista mas este posicionamento da Rússia não é recente. Pelo menos desde 1998 que os principais think tanks de Moscovo fazem a leitura (correcta) de que os EUA estão a rodear a Rússia, e estão de tal forma próximo das suas fronteiras que Moscovo terá de reagir. Nas três fronteiras da Rússia (Este, Sul, e Oeste), os EUA têm instalações militares em duas delas (Sul e Oeste). A Este está a China, que já disse em Duchambé que “apoiam o papel activo da Rússia nas operações de paz e de cooperação na região”. Com a presença de forças militares/sistemas de defesa anti-missil muito próximo das suas fronteiras e o desmembrar sistemático do seu sistema de influências político-diplomáticas não admira muito que estejamos a assistir neste momento, no Mar Negro, a operações anti-tráfico de droga com um cruzador e assistência humanitária com destroyers.

O Sebastião tem razão, um erro não justifica o outro. Esperemos que Washington e Moscovo estejam conscientes do caminho que estão prestes a trilhar.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

a Rússia...

- a Rússia já não é a URSS (às vezes são os próprios russos que se 'esquecem');
- a Rússia não tem a capacidade militar que a URSS tinha (7 vezes inferior à dos EUA). A China tem mais...
- a Rússia continua a precisar de acesso a mares 'quentes' (cuja água esteja descongelada uma boa parte do ano), o eterno objectivo geoestratégico da potência continental...
- a Rússia não tem capacidade militar suficiente pelo que optou por criar em seu redor um grupo de segurança colectiva que lhe permita manter a influência geopolítica sobre os seus vizinhos... e como contra-peso da influência norte-americana...
- a Rússia, embora se encontre bastante melhor em termos financeiros (com a alta nos preços do petróleo/gás a preços elevados), não dispõe de uma economia sólida, equilibrada e forte que lhe permita 'sonhar' com 'aventuras' proto-militares... com a agravante de um dia ver o preço do crude descer de tal forma que a GAZPROM começará a não ter dinheiro suficiente para pagar novos investimentos e ao mesmo tempo manter os existentes.
- a Rússia não se pode dar ao luxo de actuar unilateralmente (como os EUA). Deve sempre (e isto é que é complicado para o político russo do Sec. XXI) dar a ideia de que são multilaterais e que respeitam o Direito Internacional... A forma perderam os media neste conflito com a Geórgia é sintomático do pouco calculo que os russos fazem sobre a forma como lidam com a Imprensa...
- a Russia está a experimentar o seu novo líder e Medvedev já deu provas daquilo que em tempos afirmou o actual PM russo... Medvedev não é uma versão mais 'ligeira' de Putin...

Claro que de todas as considerações possíveis, é generalizado o sentimento de que o Ocidente e a Rússia precisam um do outro, dependem um do outro para a concretização dos seus objectivos mediatos e imediatos. Daí que não esteja muito preocupado com os comentários lançados por analistas catastrofistas e deterministas de que estará próximo uma nova 'Guerra Fria'. As condições que levaram aos mais de 40 anos de confronto ideológico já não são as mesmas para a Rússia, mas também não são para os EUA...
...não é por Medvedev vir dizer que 'não tem medo'...

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Um tiro no pé

A Rússia reconheceu a independência da Abcázia e da Ossétia do Sul - ver aqui. Esta decisão, para alguns expectável depois da votação unânime na Duma, parece-me um tremendo erro por parte da Rússia, que, assim, se arrisca a pôr em causa os ganhos estratégicos que conquistou até agora e a alienar por completo grande parte dos países Ocidentais.
Depois do erro clamoroso que foi a independência do Kosovo, Moscovo ganhou alguma "superioridade moral". Independentemente dos seus interesses nacionais, que foram o que justificaram a sua posição, a Rússia apareceu como um dos poucos países para quem o Direito Internacional ainda ditava alguma coisa. Agora esse capital esfumou-se por completo.
Esta decisão de Moscovo garante, é certo, o fim da integridade territorial georgiana, mas abre uma perigosíssima Caixa de Pandora, como o Niccolo já aqui referiu, que poderá pôr em causa aquilo que a Rússia conseguiu evitar com o fim da URSS - o revisionismo das fronteiras no espaço pós-soviético.
Acresce que o argumento utilizado pela Rússia, e cuja expressão concreta até agora foi a resposta ao ataque georgiano, arrisca-se agora a substituir o princípio sacrossanto da integridade territorial. Este foi agora substituído, efectivamente, por um outro - o da protecção de cidadãos russos onde quer que eles estejam (leia-se, no futuro próximo, Ucrânia). Com a agressão da Geórgia à Ossétia do Sul a Rússia pôde esgrimir este argumento com um relativo à-vontade: as acções de Tiblissi eram um argumento auto-suficiente para a resposta de Moscovo e aquele outro, de protecção dos cidadãos russos, era apenas utilizado como argumento supletivo. Ora, com este reconhecimento, a justificação russa para o reconhecimento da independência da Abcázia e da Ossétia do Sul, ganha uma força tal que se sobrepõe ao princípio da integridade territorial.
Duvido que Moscovo não tenha ponderado o efeito deste passo no seu próprio território - nomeadamente na Tchetchénia e no Daguestão. Fê-lo certamente e concluiu que os benefícios superam os custos.
Quanto à reacção dos países ocidentais, que reconheceram a independência do Kosovo sempre argumentando que esta não constituía qualquer precedente, estes não vão assistir impávidos e serenos a este desenvolvimento. O seu relacionamento com Moscovo vai sofrer um sério revés e, confesso, outra coisa não seria de esperar. Este passo é perigoso - tanto quanto o do Kosovo. Mas um erro não justifica outro.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

De que é que estavam à espera?

Agora que a poeira começa a assentar em torno da crise na Geórgia partilho aqui algumas reflexões sobre o que se passou e sobre as consequências deste episódio no futuro da estrutura securitária do eixo euro-atlântico.

1) A primeira pergunta que me vem à mente no meio de tudo o que se passou é: de que é que a Geórgia estava à espera? Nos últimos tempos, principalmente desde o ano passado, que a Rússia vem dando sinais cada vez mais explícitos de que aquilo que foi tradicionalmente o seu back-yard o continuará a ser durante muitos anos, não aceitando Moscovo que este passe a esfera de influência do Ocidente. Ao atacar a Ossétia do Sul, em violação dos acordos de cessar-fogo, a Geórgia "descongelou" este conflito e forneceu um pretexto único, de que Moscovo estava certamente à espera, dada a prontidão da resposta, para que a Rússia destruísse o incipiente aparelho militar (que vinha sendo, segundo relatos vários, significativamente melhorado com a ajuda dos EUA), as infra-estruturas e a economia da Geórgia.

2) A reacção da Rússia foi certamente desproporcionada face aos ataques georgianos. Mas Moscovo não perderia certamente a oportunidade única que lhe foi oferecida de bandeja pelo Presidente georgiano, cuja ingenuidade, se não fosse trágica, seria certamente cómica.

3) De facto, estaria Tiblissi à espera que os EUA, ou qualquer outro dos países que, a meu ver irresponsavelmente, apoiaram a sua adesão à NATO, fosse a seu socorro militarmente? Um país envolvido numa guerra de guerrilha no Afeganistão e outra no Iraque, iria, na mente do Presidente Saakashvili, entrar em conflito com a Rússia?

4) Este jogo de "name and shame" não pode deixar de fora os EUA. A Administração Bush foi inepta, irresponsável e ambígua. Prometeu aos georgianos a entrada na NATO, ajudou-os a armarem-se, comprometeu-se publicamente a defender a sua integridade territorial, enquanto, nos bastidores, enviava tímidas mensagens (pelo que se lê nos jornais) de contenção e de aviso sobre aquilo que Moscovo estava a fazer (v.g. aumento das relações económicas com a Abcázia e a Ossétia do Sul) e que não era mais do que uma armadilha em que Tiblissi não deveria cair. Inconscientemente, Tiblissi deveria saber que o apoio de Washington não seria tão incondicional quanto alguns poderiam crer, já que, como alguém escrevia no Washington Post, Tiblissi preferiu pediu perdão depois do que pedir permissão antes.

Face a este cenário, o que esperar no futuro? A meu ver, as consequências são relativamente lineares:

1) A Rússia atingiu os seus objectivos. Destruiu a Geórgia e logrou criar uma situação face à qual manterá em território georgiano, durante muitos e bons anos, o seu exército. Moscovo não quer a independência da Abcázia e da Ossétia do Sul (o tão propagado precedente do Kosovo é um mero recurso estilístico e as resoluções aprovadas na Duma a defenderem o reconhecimento dessa independência não passarão do Kremlin). O que Moscovo quer é ter lá tropas, é manter o conflito congelado e a Geórgia amputada.

2) Com este conflito, a Rússia chamou o bluff do Ocidente e dos EUA em particular. Aqueles que garantiriam a integridade territorial da Geórgia não fizeram mais do que apelar a um cessar-fogo (numa rara demonstração de bom senso). Moscovo está agora certa de que pode fazer o que bem entender na sua vizinhança que dificilmente alguém, em Washington ou Londres, quererá entrar em guerra por causa de Tiblissi.

3) A Geórgia (e a Ucrânia) não vão entrar na NATO. Quem pensou que os afrontos feitos a Moscovo na década de 1990 (em que num dia se dizia que a NATO não se iria alargar a Leste e em que, noutro, se acolhiam os Estados Bálticos no North Atlantic Council) se poderiam repetir desengane-se. Moscovo não o vai tolerar e deixou-o bem claro. A Ucrânia deve agora, em bom português, pôr-se a pau e pensar bem se quer manter a posição de recusa à continuação da frota russa no porto da Crimeia. O argumentário russo, nesta crise, foi "há russos na Ossétia e é nossa função e dever protegê-los". Não é sequer necessário invocar números para sabermos que a Ucrânia está dividida em dois, entre russos e ucranianos, e todos sabemos para que lado pende a Crimeia.

4) Sarkozy foi dos poucos dirigentes europeus que esteve bem. Não entrou publicamente a matar, culpando uns e outros. Assumiu uma posição conciliatória, apelando a um cessar-fogo e negociando-o rápida e eficazmente. Se a UE quer manter alguma credibilidade nesta crise e no futuro que se avizinha, sugere-se que o bom senso impere e que se evitem rumos de acção mais voluntaristas.

5) A carreira de Saakashvili está acabada. O apoio dos EUA vai ter um fim próximo e o rumo de aproximação da Geórgia à UE vai ser mais difícil. Apoiar-se-á certamente a reconstrução do país e conceder-se-ão, eventualmente, algumas benesses, mas a União não vai querer no seu seio um país comandado por gente desta laia.

Bottom-line: Moscow is back.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Kosovo, Ossétias e Pandora

Num há direito, noutro... não há direito!
Num temos um opressor, noutro... temos um arauto (se é que se pode chamar Mikhail Saakashvili um arauto).

Mas não foram os russos quem abriu a caixa!