terça-feira, 23 de outubro de 2007

Um ventinho frio

Vamos ter a XX Cimeira UE-Rússia na próxima Sexta-feira, dia 26, em Mafra. O MNE russo, Serguei Lavrov, deu uma entrevista à Lusa que vale bem a pena conhecer. Vou aqui transcrever (com a devida vénia aos Josés Meirelles e Milhazes) algumas das afirmações do ministro, comentando-as:

Serguei Lavrov, em entrevista por escrito exclusiva à Agência Lusa e pesando o actual estado das relações entre o seu país e Bruxelas, sublinha que, devido aos alargamentos, a União Europeia (UE) se tornou “menos uniforme”. “As últimas decisões da UE fixaram essa heterogeneidade”, assegura o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, expressando o “desejo sincero” de que os 27 superem a “doença de crescimento” para formarem “um sistema harmonioso de tomada de decisões sobre o seu posterior desenvolvimento”. “Uma UE forte, eficaz, que não permita o recuo para o passado nacionalista e populista, corresponderia (…) aos interesses (…) dos seus parceiros, incluindo a Rússia”, garante.

- A Rússia não gosta de qualquer alargamento da UE, como não gostou do desmantelamento do "talude soviético", nas suas vertentes política, militar, económica e cultural. Qualquer ex-Estado satélite que se junte ou à UE ou à NATO é sentido como uma derrota em Moscovo. Talvez vá além da racionalidade, esta reacção, e acho-a compreensível. A perspectiva de Moscovo parece ser esta: os Estados da Europa Central/Oriental pertenciam a um bloco político-estratégico, agora pertencem a outro; os blocos opõem-se, é essa a sua natureza e propósito, e desta perspectiva crua de política de poder Moscovo não sai. Daí vir dizer-nos que a UE é "heterogénea", que há elementos muito diferentes, que chocam, e cuja assimilação vai levar tempo antes de novo alargamento... "Não façam novos alargamentos, tenham calma..."

- E quanto a passados nacionalistas e populistas, o MNE russo está bem habilitado a falar, porque vive num país em que nacionalismo e populismo são o presente. Mas o de alguns EM da UE (não digo nomes) são maus e agressivos, e o da Rússia é justo, bom, belo e defensivo.

Lavrov discorda do facto de a “solidariedade europeísta” ser “frequentemente utilizada para exercer pressão sobre a Rússia”, visando “arrancar cedências políticas, ou económicas” nas suas relações com terceiros. “Semelhante atitude de alguns países comunitários não é claramente construtiva”, lamenta, admitindo que “não contribui para a solução dos problemas” e até divide as “próprias fileiras” da UE. “A solidariedade europeia não deve ser uma amizade contra alguém, pelo contrário", precisa.

- Cá está: a Rússia defende apenas o que é seu. Vê-se rodeada de gente poderosa e ávida de riquezas (como bálticos e caucasianos, por exemplo), e precisa de defender-se. A UE pressiona, quase violenta a Rússia, ao exigir estabilidade no fornecimento de gás e de petróleo e reciprocidade no tratamento às empresas; a UE repudia truques sujos como "avarias" em oleodutos e pirataria informática a EM que desagradam a Moscovo. Mas não devia nem exigir nem repudiar, porque a Rússia só se defende.

- A UE divide-se a si própria, outra grande verdade. Algo de que, ao acontecer efectivamente (Nord-Stream, carne polaca), a Rússia não se aproveita nem manipula para sua vantagem. Até parece que as boas práticas estão do lado da Rússia.

No entanto, Lavrov frisa que “a Rússia, ao realizar a “opção europeia”, deve “conservar a liberdade de definição e realização da sua política interna e externa”. Moscovo - adianta - está “interessada na manutenção e desenvolvimento multilateral das relações com os países da Comunidade de Estados Independentes (CEI) - formada pelas antigas repúblicas soviéticas, menos as bálticas Estónia, Letónia e Lituânia -, com os Estados Unidos, China, Índia e com os novos centros mundiais emergentes na região do Sudeste da Ásia”, o que corresponde igualmente aos interesses da UE.

- A Rússia é um pólo em si mesma, já sabemos, e já sabemos que a Rússia não vai deixar ninguém intrometer-se nas suas políticas interna ou externa, porque a Rússia é maior e mais forte e está a defender-se. E a CEI é território off limits para vocês.

O chefe da diplomacia de Moscovo recorda que o Presidente Vladimir Putin, num texto de Março dedicado ao 50.º aniversário do Tratado de Roma, concluía não poder “existir uma completa unidade do (…) continente enquanto a Rússia não se tornar parte orgânica do processo europeu”. “A interdependência positiva no sector energético (…) cria boas premissas para a posterior aproximação em todas as outras áreas de cooperação”, conclui Lavrov.

- Que «parte orgânica» é esta que não abdica de liberdade nas políticas interna e externa? E se quanto à interdependência energética estamos mais que esclarecidos, esta é tão positiva, mas tão positiva, que já nos pôs a todos na UE a pensar em renováveis, em projectos de partilha estratégica de recursos e em alternativas desesperadas aos hidrocarbonetos russos. Mas é verdade que, havendo confiança e estabilidade nessa área, outras poderão seguir-se. É só passar dois ou três Natais sem ameaçar fechar a torneira.

O tom do remendo é beligerante, eu admito, e explica-se essencialmente através de duas frustrações: a primeira, que é a de já não se conseguir saber quem começou a provocar quem e quem falhou em primeiro lugar a aproximação, que entendo tão útil e desejável, entre a Europa Ocidental e a Rússia; a segunda, é a de ver na Rússia todo o potencial e capacidade para gerar esse mesmo entendimento, mas não o fazer por opções (ou imperativos) de política interna e de conservação da estrutura de poder. A Rússia sairia reforçada de um relacionamento próximo e franco com a Europa Ocidental; prefere desperdiçar as suas - e as nossas - energias em confrontos.

5 comentários:

linfoma_a-escrota disse...

dada não está morto, cuidado com os sobretudos



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David Lourenço Mestre disse...

Sim, emana de moscovo uma visao nacionalista, populista, pouco democratica, mas tambem é verdade, há o firme desejo de levar a russia a bom porto.

E aqui a visao russa é - talvez nem sempre - pragmatica. Sim, nem sempre pragmatico, mas é um estado que vê nos negocios e no crescimento da economia o caminho para recuperar os "good old days".

O caminho nem sempre tem sido o melhor mas há de qualquer modo vozes contrarias que podem no fim de contas equilibrar o peso da balança. Há pouco tempo, voz influente, general russo escrevia num think tank russo justamente neste sentido

Otto disse...

Ao David:

o que será um «bom porto» para a Rússia a que o Presidente Putin nos tem habituado? Será a máxima japonesa pré-1945 "Estado rico, exército forte"? É o uso dos petrodólares para sustentar um Estado militarizado? As perguntas que deixo são só para alimentar a conversa, note.

Os "good old days" têm um preço, é o do confronto com o Ocidente. Até admito que muitos russos estejam dispostos a pagá-lo; mas é isso que está certo? É essa a melhor solução para a Rússia? Para nós, Portugueses, Ocidentais, posso já responder que não!

Encerra o seu comentário com fé numa alternativa, ou em contrapesos dentro do sistema. Também acredito nisso, mas penso que as opções que Putin tem feito vão repercutir-se longamente, sobre várias gerações de russos, ou então são apenas uma tradução do sentir actual, e há a imputar-lhe o não ter agido para mudá-lo de forma mais construtiva.

Se puder indicar-nos o think tank russo ficaríamos muito gratos.

Sempre disponível para continuar a conversa,

Otto

David Lourenço Mestre disse...

Bom as opinioes flutuam, a minha nao é excepçao. Talvez tenha sido optimista quanto a putin

O bom porto seria recuperar o estatuto de super-potencia. E o caminho passaria pela economia - sem as velhas superstiçoes ideologicas.

Pergunto se o conflito, por enquanto verbal, com o ocidente será a longo termo sustentavel.

A russia talvez nao seja uma democracia kantiana, hoje, ou uma democracia liberal como a entendemos em 2007, uma democracia que se veste em milao, que cultiva-se em oxford e que nao passa sem a cultura popular norte-americana, mas e daqui a 10 anos? francamente nao acredito em sociedade fechadas e prosperas. E a russia está a mudar

O think tank é Nezavisimoe Voennoe Obozrenie, um think tank militar. Olhe que nao falo russo. Vinha um artigo no foreign policy a esse respeito

Otto disse...

David:

As opiniões têm mais é que flutuar, eu próprio confesso que, até aos primeiros soluços nos gasodutos e à criação de Mocidades Russas, tinha uma boa impressão daquilo que Putin queria para a Rússia.

A Rússia foi sempre uma grande potência, mesmo no fundo dos problemas económicos, graças ao poderio militar que conservou da URSS. Só não se comportava enquanto tal; agora comporta-se como uma grande potência perturbadora e agressiva. E aquilo que mais me custa é acreditar que a Rússia poderia voltar à grande cena de forma muito mais mansa e eficaz! Custa-me assistir ao desperdício de energias e de oportunidades, é isso.

Daqui a 10 anos será que as estruturas montadas por Putin vão dar de si pelo jogo democrático, ou vão estar ainda mais reforçadas por práticas reiteradas de acomodação, pelo moderados, e da repressão dos dissidentes? Não sei até que ponto a posição estratégica da Rússia é permeável à abertura da sociedade. Ter mísseis e tropas no estrangeiro E ter cinemas e Coca-Cola é... ser como os EUA!

Mas é que a Rússia alcançar paridades estratégicas e de influência com os EUA não é bom para nós, Portugal ou Europa.

Vou à procura do think tank, obrigado!